domingo, 16 de agosto de 2015

Mia Couto - Terra Sonâmbula

Olhei o mar, os milibrilhos do luar me acendendo os olhos. O mar: porquê eu me achegava nele se, até então,suas águas só me ofereciam sofrimento? Talvez que ali, no meio de tão extensas securas, o mar fosse a fonte que trazia e levava todos meus sonhos.
Ao longo da areia se montoavam gentes. Fogueiras sucessivas luziam no rosto da escuridão. Se escutavam os tambores, sombras esvoavam como ondas na areia. Continuavam as cerimónias para provocar mais naufrágios. Se convocavam feitiços para que os barcos, carregados com donativos, tropeçassem a pique nas rochas da maré baixa. E ficassem esbarrigados, derramando caixotes e volumes pelos bancos de areia. Quem dera um oxalá àqueles pobres! Me olhavam com desconfios mas não me davam demais atenções. Lembrei meu pai, sua palavra sempre azeda: agora, somos um povo de mendigos, nem temos onde cair vivos. Era como se ainda escutasse:
- Mas você, meu filho, não se meta a mudar os destinos.
Afinal, eu contrariava suas mandanças. Fossem os naparamas, fosse o filho de Farida: eu não estava a deixar o tempo quieto. Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera. Ou como aquelas fogueiras por entre as quais eu abria caminho no areal.

Vozes em briga me trouxeram ao presente.



a experiência humana

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